segunda-feira, outubro 30, 2006

Orfeu menos Eurídice


“ ...
Não posso esquecer
O teu olhar
Longe dos olhos meus

Ai, o meu viver
É de esperar
Pra te dizer adeus


Mulher amada
Destino meu
É madrugada
Sereno dos meus olhos já correu
Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais por que te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada ...
E sabes de uma coisa ? Cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, - que é que eu sei ! Essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem – nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! E me dizes essas coisas
Que me dão essa força, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada
Sou coisa sem razão,jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice ...
Coisa incompreensível!A existência
Sem ti é como olhar um relógio
Só com os ponteiros dos minutos.Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe,qual pai,qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada!Ah!Criatura!Quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como vento à flor
Despetala mulheres - que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
...
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando tu voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo!
...”
Monólogo de Orfeu – Vinicius de Moraes *

Quando descobri o Amor, o Amor me deixou
Se fosse eu em tempos outro
Diria que era castigo
Por nunca ter respeitado o Amor que tiveram por mim

Mas como respeitar o que não conhecia

Hoje conheço muito bem o que é Amar e não acredito ser um castigo, não ter o meu Amor junto a mim,
Mas acredito sim
Que de hoje em diante jamais irei desrespeita um Amor,
Ao contrário,
Vou ama-lo, como só eu sei dentro do meu peito
Como alguém que finalmente sentiu na alma a emoção
Do Amor Verdadeiro ...


* Texto tirado do Cd de Maria Bethânia: Que falta você me faz
Imagem :Orpheus and Euridyce (George Frederick Watts, 1869)

sábado, outubro 14, 2006

Shane


Nosso primeiro encontro foi delicioso,
Você era presente para outra pessoa
E fomos busca-la

Pequena de olhos azuis, tremendo de medo te trouxe para casa sob meu coração
Ali você dormiu o caminho todo ..ao som da batida do meu peito
Aqui já nascia uma paixão

Aos poucos foi se tornando a alegria da casa,
Quebrando tudo,
Se jogando pela parede,
Desobedecendo só pelo gosto de me ver brava
Bagunçando tudo que encontrava
Ao mesmo tempo em que o carinho sempre foi enorme

O primeiro banho e sua gritaria
Os ataques constantes a comida
E nos últimos tempos deu para falar sem parar
Conversa muito
Fala textos enormes pela escada
Me chama na cama para comer com um carinho sem igual
Na verdade é a concretização do carinho, a todo momento
Atenta
Ciumenta
Protetora
Cuida do que é visível e do que é invisível
Minha bruxa amada

A cada dia me alegro mais e mais com o fato de tê-la trazido para casa
Você me devolveu uma alegria infantil que adoro
Com sua boca aberta, displicente, pensativa, desligada de tudo
Com sua pata que carinhosamente me chama pelo ombro, enquanto durmo
Pelos seus beijos e banhos que recebo com alegria
Pelos seus sonhos no meu colo, sempre agitados

Já não sei viver sem você

Beijo de nariz com nariz
Sou sua
E você minha criança ..

domingo, outubro 01, 2006

A Queda do Mandarim




Por sete séculos eu fui
Escrava devotada de um mandarim
Trançava ouro em seus bigodes, seus pagodes
Forrava sua cama de cetim
Regava suas flores de cristal
Bordava rouxinóis em seu jardim
E agora, com a queda do Império
Falando sério
O que será de mim?*
..........

E houve a queda do Império
E eu que achava que seria meu fim
Descobri meu início
O começo de uma nova forma de olhar e entender a vida
Completamente diferente da escrava devota
De um Mandarim
Me descobri escrava devota de Mim
Com minhas rosas
Minhas roupas de seda
Beija Flores nas janelas
Meus colares coloridos
Minhas orações cantadas diariamente
Meus livros das mais de mil e uma noites

Vivi tanto em função do belo Mandarim
Em dar a ele todo meu afeto
Que esqueci de me dar este mesmo afeto molhado pelas águas salgadas do mar
E ele
O Mandarim pouco se importou com tudo o que recebeu
Na verdade ele acreditou que era uma obrigação da escrava ....

O que nunca foi,
Só ele não percebeu
Pois como fora criado dentro de seu Império
Não aprendeu a perceber quem não fosse ele

Hoje penso neste Mandarim e tenho pena da sua eterna solidão
Pois jamais saberá viver sem seu Império
Ao mesmo tempo em que eu
Escrava devotada e que o adorava
Encontrei a vida, fora dos muros
Fora das indiferenças
Fora das mentiras

Hoje escrava aprendiz da minha vida
Livre pelas ruas
Com o coração leve
Arrumo minha cama com cetim
Bordo milhares de beija flores nos meus dias
E me banho com o ouro da beleza
Da luz
E da riqueza que conquistei
Depois de deixar o Mandarim e suas inutilidades de amor


* O Mandarim
Cida Moreira
Composição: Jussi Campelo